UIARÁ DOS REIS

Alan Mendonça

Nome : Uirá dos reis

Biografia : 

43 anos, é poeta, compositor, roteirista, ator, cineasta esporádico, desenhista sonoro, editor e montador. Tem cinco livros publicados (dois impressos e três digitais para download), vinte discos (solo e com outros artistas) e assina cerca de trinta trilhas sonoras para cinema, teatro, dança e instalações artísticas. Parceiro de diversos nomes importantes de sua geração, tem um projeto de música eletrônica/eletroacústica chamado URO e é fundador, diretor e curador do selo de música e literatura independentes, SuburbanaCo.

Poesias

MÚSICA MODERNA

Será sempre impossível alcançar o mistério sem sair de si
é preciso dar ao peito a rua, à escuridão do íntimo o torpor
do infinito
o mistério é sempre maior que nós
que somos gigantes
moléculas flácidas regendo a sinfonia trôpega e sem
sentido aparente
música moderna
dilatando espaços recriando órbitas
atropelando certezas em busca de mais verdades
que não durarão
nada dura o suficiente
e no entanto tudo resplandece
a força do movimento da matéria é o que cria a fé e o mito
o que nos faz aturdidos
o que explode cidades e arranha-céus
nada durará para sempre a não ser o ato impensado
a improvável delicadeza diante do verdadeiro espanto
a audição pela primeira vez do mundo tal como ele é
e aquele instante ínfimo tão modificador

ÉDER 19

Agora que o mar me fere
(olhos obsessivos mastigando o asfalto
e a areia) sinto uma enorme falta
de você
que me despiu solene e me disse
Os atalhos todos ficam do outro lado –
e eu acato – sorrio sincero e acato –
a visão do fim do mundo – suas veias
sobre as minhas – e nossas mandíbulas
tortas sob o algodão frio do lençol
Agora que a tarde é morna
(boca submissa sob a multidão que grita)
sinto uma enorme falta de mim mesmo
que abria a porta e cantava canções
de alento enquanto você dormia
Para onde, meu amor, nós partiremos
onde foi que nos perdemos para onde
agora, que não mais estamos juntos,
partiremos, meu amor?
Agora que a noite é quente
(olhos sem descanso para os lados
e para trás) sinto uma enorme vontade
de sentir seu cheiro novamente, amor,
e de agarrar em seus ombros –
fustigação elevada – brincando de ser/ não ser –
os dias e seus venenos
75 UIRÁ DOS REIS
Me perco entre a sala e o banheiro,
quebro espelhos,
rasgo roupas,
pinto o cabelo com lama e
me esfrego no chão, na cama de lençol branco,
nas paredes do corredor, grito seu nome em silêncio,
escrevo seu nome no chão da cozinha e me deito
enquanto a comida esfria –
sabemos dos riscos severos que rondavam seu mocó,
amor, e o quão terrível poderia ser a coisa toda se
fosse maior o inverno:
enquanto cuidávamos do seu olho – você de joelhos e
eu sobre os ombros – queríamos nunca dormir
Agora que o tempo é outro só quero me despedir
Do livro O Livro Cinza (2001)

LATONA´S BLUES

Parto desta cidade miserável e aturdida para os confins
em busca de proteção (deuses são traidores e cavernas
são difíceis de encontrar) / “minha cara” a voz suave a
pele morna: “minha cara estes desgraçados caçarão a ti e
a tudo o que tu fi zeres” e eu disse que sim e preciso de
pão – os monstros sagrados rangem portas a procura de
tormentas onde possam sufocar nossas amedrontadas almas – este é o jogo e é o poder (esferas flutuantes – lilith
deitada sob o mundo – joana d´arc a meu lado contando
segredos) cabalas e cruzes e pés de marfim: toda a miséria a estas paisagens e todo o fogo preciso para degenerá-las, posto que é urgente a insurreição – e também todo
o conforto àqueles do mundo que trouxerem a liberdade
tatuada em seus peitos e punhos e pés: sem altares nossos deuses não existirão e celebraremos incontidamente
a cada um de nossos camaradas.
Do livro Magma Obtuso (2019)

POEMA DA CADETRAL OU POR UM
LUGAR ONDE SE TOQUE O OCEANO

As palmeiras saem rígidas do chão
E se libertam. Ascendem selvagens e cortam o céu
(a rigidez do corpo – o colo absoluto – a ereção estática)
As palmeiras saem rígidas do chão e se libertam:
O que é verde, seus cabelos, o que é verde
se estica e forma a paisagem.
Como num jogo de sombras, elas cortam o céu
e rabiscam todo o chão num degradê infame, sem igual,
Ininterrupto – as folhas abertas – em tiras sobre o chão
Recorte geométrico que os indígenas nos tentaram
ensinar, mas aprendemos outros sabores
e que infelicidade
na opacidade dos olhos e nas sombras das catedrais
Infelicidade na cruz. (Uirá sobe o rio violento e luta contra os
deuses a procura de seu próprio) Uirá canta em silêncio.
As palmeiras desenham seus sóis
Formam seus universos
E caminham juntas entre as nuvens que se movem
As catedrais, verde oliva, essas não tem cor.
Inédito (2000)

Sem Título (fragmento)

A alma fechou-se.
não batas
não abrirei.
a noite galga pelo meu corpo
– e eu me sinto furtivo ,
vadio. tudo bem.
terei milhões de
amores
nesta madrugada.
Inédito (1997)